Grupo de professores avaliou as
redações produzidas na intenção de zerar no Enem. Presidente do INEP tentou
justificar a possível falha.
Um exame em escala continental.
Os destinos de mais de cinco milhões de jovens, que sonham ingressar na
universidade, definidos em dois dias de provas. O Enem, Exame Nacional do
Ensino Médio, mobilizou boa parte das famílias brasileiras em outubro do ano
passado.
Até que ponto a avaliação
corresponde ao desempenho de cada um desses candidatos?
E se a redação, que foi sobre a
Lei Seca, tiver letra de música, hino de time de futebol, recadinho para o
Papai Noel?
Dizer que Getúlio Vargas morreu
em um acidente de carro porque bebeu vinho no jantar e dirigiu, é ignorância,
deboche ou criatividade?
E se a redação for uma cópia
escancarada do texto base, vai levar zero?
Tudo isso estava em dez redações feitas
por jornalistas do Fantástico, em seis estados. Eles tinham uma tarefa:
escrever textos que afrontavam as regras, na intenção de zerar. No ano passado,
uma nova regra apareceu, para evitar escândalos como a pontuação de provas com
receita de macarrão instantâneo e com o hino do Palmeiras. Textos com formas
propositais de anulação, que desrespeitam o exame, são eliminados.
Das dez redações feitas pelo
Fantástico, quatro foram zeradas pelo Enem. Seis pontuaram. Uma delas, com boa
média: 600 pontos.
Nós reunimos no Rio de Janeiro
cinco especialistas em redações vindo de quatro estados. Eles avaliaram as
provas sem saber que foram feitas por jornalistas. Dadas as notas, revelamos.
Redação com o hino do Ibis
"O importante é ler as
redações, a fim de que as notas sejam justas. E cantar o hino do Íbis, o pior
time do mundo: ‘Vamos, meu Ibis, à luta. Em qualquer disputa, estaremos ao seu
lado’", dizia a primeira redação.
A banca do Fantástico concordou
com o Enem e o hino do Ibis zerou a prova.
Redação com parágrafo escrito com a língua do “P”
Outra redação zerada pelo Enem:
um parágrafo escrito na língua do “P”. Mas nenhum dos professores da banca do
Fantástico consideraram a língua do “P”.
Todos concordaram também com a
anulação da prova com trechos de letra de música.
Redação com recado para o avaliador
E quando há um recado ao
avaliador: "Será que meu corretor vai permitir que meu texto seja
aprovado? Ou vale barbaridade como no exame passado?" Todas essas redações
foram zeradas.
Nas quatro redações, nossos avaliadores
e o Enem concordaram e elas estão entre as 1.398 que foram zeradas por causa do
deboche. Como o Enem, eles pontuaram outras duas redações polêmicas, mas deu
grande diferença nas notas.
Redação com recado para o Papai Noel
“Por isso, Papai Noel, peço ao
senhor que ilumine a cabeça dos magistrados brasileiros no próximo Natal!”
Agostinho Dias Carneiro, professor de letras da UFRJ: “Considerei
isso uma inserção um pouco infantil e tirei os pontos por aqui. Então, ele está
com 620”.
Fantástico: O resto do texto está bom?
Agostinho Dias Carneiro: O resto do texto é bom.
Wilton Ormundo, professor de português: Eu pontuei bem baixo. Foram
210 pontos.
Agostinho Dias Carneiro: As instruções para os avaliadores são
altamente subjetivas e fragmentadas.
Fantástico: Então, isso permite uma avaliação mais subjetiva.
Agostinho Dias Carneiro: Com certeza.
São avaliadas cinco competências
em uma redação. Cada uma vale 200 pontos. Basicamente, os professores querem
saber se o aluno é capaz de escrever um texto coerente, com boa argumentação e
uso da língua formal.
Cada redação é corrigida por dois
avaliadores. Se as notas tiverem diferença de mais de 100 pontos, um terceiro
avaliador é chamado. E, segundo o MEC, quase a metade dos textos - cerca de 2,5
milhões de redações - foi para o terceiro corretor.
Permanecendo a dúvida, o texto
vai para uma banca de especialistas. “Você vê que essa inserção do Papai Noel
gerou, aqui entre nós, cinco posições bem diferentes, e nenhuma delas está
errada”, declara Cláudio Cezar Henriques, professor de letras da UERJ.
Redação que fere a norma do uso da língua formal
A redação seguinte fere a norma
de uso da língua formal. É escrita com as abreviações usadas em mensagens de
texto, ou conversas por computador.
“Esse texto não pode ser
penalizado porque apresenta o ‘internetês’, afirma o professor de português
Osvaldo Menezes Vieira.
“Se é problema de grafia, não é
um problema que interfira na organização mental do texto. Isso é só um problema
de grafia. Então, o desconto aí é pequeno”, diz Agostinho Dias Carneiro,
professor aposentado de letras UFRJ.
“Eu dei 240. Porque, a despeito
de haver problema de ortografia. Mas há problemas também na consistência
narrativa”, explica Chico Viana, professor de letras da UFPB.
‘Internetês’ não anula a prova,
mas não é uma boa ideia usar. A nota cai muito.
Redação com erros históricos
A redação com os erros históricos
tirou 600 pontos no Enem e foi a que mais dividiu opiniões entre os professores
da nossa banca. O texto diz, entre outros absurdos, que a Lei Seca foi criada
na ditadura militar, pelo AI-5, que o carro foi inventado na idade média e que
o presidente Getúlio Vargas, que se suicidou, morreu em acidente depois de um
jantar em que bebeu vinho.
“Lembra o ‘samba do criolo
doido’”, afirma o professor Chico Viana.
Dois professores deram zero. “A
proposta de redação avisou claramente para esse aluno que é impedido que ele
adentre a universidade, uma vaga pública gratuita de qualidade com um texto que
é incoerente e promove um certo deboche a respeito da proposta”, declara o
professor de português Osvaldo Menezes Vieira.
Dois professores deram notas
parecidas, baixas: 300 e 280. “Em certo momento, a gente fica naquela dúvida:
Houve propósito de excessos indevidos para ironizar, ou realmente desconhecimento
histórico?”, indaga o professor aposentado Chico Viana.
“Você vai encontrar, sim, muitos
estudantes brasileiros mal preparados e que escreveriam absurdos mais ou menos
semelhantes a este aqui”, afirma o professor de português Wilton Ormundo.
E um dos nossos professores
convidados deu a redação controversa a mesma nota que o Enem: 600. Lembramos:
uma nota boa, que pode dar acesso à universidade.
“Não fico feliz por isso não. Mas
admito que seria assim, uma espécie de paródia, uma sátira”, explica Cláudio
Cezar Henriques, professor de letras da UERJ.
“Com 600, eu acho que você está
dando um recado errado para esse candidato. Ele vai ingressar na universidade
sem conhecimentos mínimos que ele deveria ter como cidadão, inclusive”,
ressalta o professor Wilton Ormundo.
Essa redação, cheia de erros
históricos, ficou na faixa de maior concentração das notas do Enem. Quase 28%
dos candidatos tiraram entre 500 e 600 pontos.
Redações com apenas cinco ou seis linhas originais
Os casos mais graves são os de
três redações. Os jornalistas do Fantástico escreveram apenas cinco ou seis
linhas originais, e completaram a resto com cópia. Dois nem tentaram disfarçar.
Tiraram trechos dos textos que serviam de base para a própria redação.
Como um ‘copiar-colar’ feito à mão.
O último, copiou trechos de questões da prova aplicada no mesmo dia, parágrafos
inteiros, que nem tinham relação com o tema Lei Seca.
Redações pontuaram mesmo ferindo critério técnico do Enem
E todos pontuaram, mesmo ferindo
um critério técnico do Enem. Que diz o seguinte: se houver cópia esse trecho
copiado deve ser desconsiderado. E o avaliador vai corrigir só o que sobrar de
autoria do candidato, mas para isso é preciso que tenha pelo menos sete linhas,
sem as sete linhas, é zero.
Na nossa banca, todas zeraram. Mas no Enem tiraram 260, 380 e 440
pontos.
Professor Wilton: Esse não é nem subjetivo. Seria uma razão
bastante objetiva para zerar.
Professor Osvaldo: Dois avaliadores que não se conhecem, em lugares
diferentes do país, darem nota para um texto que é claramente cópia dos textos
motivadores? Então, é inaceitável.
Avaliador do Ministério da Educação é remunerado por produtividade
No ano passado, o Ministério da
Educação contratou e treinou 7.121 avaliadores. Cada redação foi corrigida por
dois corretores, que podiam estar em extremos opostos do país. Eles recebiam
pelo computador no mínimo 50 redações por dia. O avaliador é remunerado por
produtividade. Quanto mais redações corrigir, mais dinheiro vai ganhar.
Fantástico: Como o senhor avalia a avaliação feita dessas provas?
Francisco Soares, presidente do INEP: A avaliação cumpriu a função
que a gente esperava.
Essas dez redações elas receberam
notas adequadas ao que elas tinham para apresentar. Nós não temos um sistema
falhando aqui.
Os corretores do Enem assinam um
compromisso de confidencialidade. Não podem falar sobre o processo. Por isso,
uma professora não mostra o rosto. Ela diz que se inscreveu para poder preparar
melhor seus alunos do ensino médio, conhecendo o sistema por dentro.
Fantástico: E qual foi a sua impressão?
Corretora: Muito boa, muito boa.
Ela conta que chegou a receber
150 redações em um só dia para corrigir. Mas se recusou.
Corretora: Eu não consigo. Eu corrijo 50 redações. Eu não queria e
não saberia corrigir 100 redações. Corrigir muitas em um dia pode trazer mais
cansaço, pode provocar mais cansaço, mas ainda que esteja muito cansado, nós
quase decoramos a proposta.
Fantástico: Então, não dá para passar despercebido?
Corretora: Não. Nao deve passar despercebido.
Presidente do INEP fala sobre possível falha na correção das redações
Segundo o MEC, 3.185 redações
foram zeradas por causa de cópia ano passado. Outras quase nove mil zeraram
porque não tinham sete linhas.
Fantástico: Como estas passaram?
Francisco Soares, presidente do INEP: Primeiro, vamos deixar claro
de que essas redações foram construídas por pessoas sofisticadas. Essa
sofisticação não corresponde ao aluno típico. Então, nesse caso, os textos
começam com linhas autorais e a cópia está espalhada.
Fantástico: O senhor me desculpe, mas eu vou insistir. Porque são
cinco linhas autorais e o resto é tudo cópia. Não é nem reescrito, é cópia.
Francisco Soares: Mas eu quero insistir que existiam linhas
autorais. Em uma correção de redação, há uma dimensão subjetiva. Por isso é que
nós temos mais de um corretor. Aqui está se discutindo que ela devia ter zero.
Mas eu tive notas muito baixas. De 260, de 300 e pouco.
Fantástico: De 440.
Francisco Soares, presidente do INEP: De 440, abaixo dos 500 pontos
que seria o ponto que o Inep considera como o nível mínimo que alguém que está
terminando o ensino médio deve ter.
Fantástico: Dependendo do desempenho dele nas outras provas, ele
pode ter acesso à universidade, não pode?
Francisco Soares, presidente do INEP: O critério de uso da nota do
Enem é um critério da universidade. Sim, esse aluno, ele pode ser admitido na
universidade com essa nota. Fica muito mais difícil porque essa nota está baixa
e há uma enorme competição.
Só neste ano, mais de 170 mil
alunos estraram em universidades públicas com o resultado do Enem. Mesmo com
possíveis erros de avaliação, a melhor maneira de brigar por uma vaga é se
preparar bem, e levar o exame a sério.
Transcrita do site do Fantástico: http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2014/05/redacoes-pontuam-no-enem-mesmo-ferindo-criterio-tecnico.html
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